"Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento"

quinta-feira, 19 de maio de 2011

...

"Elas estavam no chão. Eu revirava uma à uma. Certeza quase infinita de que aquela que procurava estava em meio tantas outras, hoje sem significado. Tantas palavras soltas que se trituradas num liquidificador dariam uma belíssima carta de amor...
Pitoresco, enquanto eu arfava, ouvia aquela música, atentamente. Aquela música que me fez correr atrás daquela carta de amor...
Quando a achei, tímida, enfiada naquele molho de papéis, Maria Bethânia me dizia:

'Porém não tive coragem de abrir a mensagem

Porque, na incerteza, eu meditava

Dizia: "será de alegria, será de tristeza?"

Quanta verdade tristonha
Ou mentira risonha uma carta nos traz
E assim pensando, rasguei sua carta e queimei
Para não sofrer mais'*

Não foi a dúvida que me fez regressar. A carta me enchera de alegria, um dia. Eu senti, realmente, o que escrevi. No entanto, jamais a enviei. Estava lá, endereçada, o seu destinatário quase apagado, o remetente, jamais revelado e o texto, defasado. Nostalgia daquilo que não vivi? Não. Precisava das minhas cartas para me alimentar a alma enquanto ela esmorecia, abraçada num travesseiro úmido. Aquela era mais especial que as outras. Projetei-me toda nesta carta para espelhar tudo aquilo que eu era. Nostalgia daquilo que não me tornei? Não. O mundo sempre soube acertar nas escolhas. Eu que nunca fui a mais paciente de todas as pessoas. Mas eu estava em conflito. Minha alma gostava do tempo em que ria demasiadamente. Ria lacrimejando, tossindo, implorando para não rir mais. Minha alma, coitada, esqueceu-se que tão bom quanto rir de forma descabida, é sentir as pernas bambearem, sentir o coração martelar, sorrir com sinceridade... Ela nem estava se importando. Tive de dar um crédito a ela e alimentá-la de uma rica dose de mim mesma.
Mas ele me ligou e nem havia conseguido começar a ler a carta. Dobrada estava, dobrada ficou. Ele me fez amolecer. Se fosse feito água, estaria escorrida no chão... Sem que eu percebesse, a carta já estava tímida, novamente, em meio as outras. E eu não queria mais projetar-me a um passado saudoso. Queria estar, inteira, no presente. As coisas que ele me dissera, naquela noite, ao telefone... Se eu contasse, pareceriam ridículas. Talvez o fossem. E eu ligava? Não! Ora acariciava a parede, com meu corpo, ora encolhia-me em meu corpo. E ele falava coisas que intercalam entre o bom senso e a incredulidade... E carta? Havia voltado à sua caixa... Seria, outra vez, esquecida, para outrora ser lembrada...


* Cartas de amor - Maria Bethânia (Texto de Fernando Pessoa)